Milagre em Santa Anna


Fazendo-me valer do aspecto contextual trabalhado no filme “Milagre em Santa Anna”, de 2009, dirigido por Spike Lee, a saber, a II guerra mundial, trato aqui de redirecionar a discussão a um pólo intrigante, talvez despercebido pelos olhares previamente condicionados dos espectadores a se deterem propriamente a intensidade e realidade dos efeitos visuais e sonoros ou o triunfo do mocinho ao término da trama, como manda o script da demanda refuncionalizada nas relações com a indústria cultural. Ou seja, dentro de um universo que retrata o assassinato misterioso, a valiosa peça de arte desaparecida ou mesmo o questionamento que engendra a preocupação central da maioria atenta: “Qual o milagre?” limito-me a observar e refletir, seguindo o viés escolhido por James McBride, no roteiro que se baseia em seu livro, sobre o preconceito referente à cor da pele dentro das próprias bases americanas no período da II guerra mundial, que hierarquizava os homens sem ao menos fazer-se preciso qualquer distinção de patente.
O filme “Milagre em Santa Anna” é responsável por suscitar inúmeras sensações, dentre estas a mais frequente é o estado de mistério que o espectador se insere. Primeiro, pelo crime cometido por um funcionário dos correios (Hector Negron) prestes a aposentadoria; depois, por este mesmo funcionário guardar, em seu apartamento, uma peça com mais de 450 anos de existência, originária de Florença, na Itália, sumida desde os ataques nazistas na região, em 1944; e, por fim, pelo garoto, Angelo Torancelli, originário da região de Santa Anna di Stazzema, na Itália, resgatado por quatro integrantes da base americana “Buffalo Soldier”.
Mas, o que trata de estabelecer uma conexão aos respectivos caminhos, tanto dos soldados americanos quanto do garoto Angelo, foi um fator talvez não captado com tanta veemência no seguimento do filme (especialmente pela anestesia provocada pelas condições misteriosas impostas pelas situações), expresso nos comportamentos que tomam como direcionamento primordial a “superioridade de raça”. No entanto, devo ressaltar o brilhantismo ousado de Spike Lee e James McBride em retratar esta condição dentro das próprias forças armadas americanas, além de expor (tomando os soldados como mecanismos dessa exposição) a indignação pelas relações de sociabilidade oferecidas no próprio país naquele período (mesmo que o enfoque central não seja esse, principalmente pelo que expressa a frase primeira de marketing do filme, citada por Pal Collins: “O melhor filme de GUERRA desde O Resgate do Soldado Ryan”, Pal Collins, WWOR-TV/New York.




Assim, nas bases americanas, negros não eram merecedores de confiança. A incredulidade é fatal para os quatro soldados americanos negros (Samuel Train, Bishop Cummings, Hector Negron e Aubrey Stamps) que ficam totalmente ilhados entre os inimigos nazistas, sem reforços, especialmente pelo fato de que suas coordenadas de localização no campo de guerra não possuem credibilidade informacional alguma. Tão irônico quanto é o motivo que os fizeram posteriormente mudar de rota: guardar a vida de um garoto italiano que havia se ferido na explosão de um míssil. Um garoto branco.




Também, nas bases americanas, os negros eram sujos. Nada mais justo para o dono americano de um estabelecimento próximo a base militar em servir sorvetes nos fundos do local a soldados negros de folga. Tão irônico quanto é que, na frente do balcão, quem degustava os mesmos sorvetes eram os superiores brancos do exército, além de prisioneiros alemães, capturados nos ataques as bases nazistas.




Na Itália, após a passagem por Vergemoli, os quatro soldados encontram abrigo na casa de uma família humilde, numa vila a caminho de Pietrasanta. E exatamente ali, onde a imprevisibilidade das emoções destes homens aflorava no ódio do estado de marginalização a qual foram introjetados no espaço da guerra e, principalmente, vistos como empecilho para o triunfo estratégico do próprio país, foram eles recebidos como soldados americanos, não como negros, mas combatentes na guerra. Até então, como explicar que alguém está abdicando do conforto do lar, da hospitalidade familiar, para caminhar junto à morte quase certa em nome de um país que desconhece os direitos basilares da igualdade, mesmo que esta seja uma utopia pré-declarada? Como defender a bandeira daquele que segrega? Talvez, um dos soldados americanos tenha refletido sobre este aspecto da realidade quando respondeu que estava lutando por um futuro melhor seu e de seus filhos e, durante uma confraternização daquela humilde vila italiana, Stamps disse a seguinte frase a seu companheiro de base Negron: “(...) Eu amo a Itália!”. Além disso, afirmou que ali todos o viam como alguém, como um homem, não como “o negro” (no que diz respeito ao sentido pejorativo anexado a palavra) e que estava envergonhado por se sentir em casa num país que não o dele.




Desta forma, como raras vezes antes, um filme retrata não apenas a realidade da vida dos negros de maneira impactante (reiterando que este não se posiciona como objetivo nuclear), mas também se contrapõe ao estereótipo de “herói” e “mocinho” dos Estados Unidos nas sucessivas guerras que travou, condicionando-nos a outra interpretação, a da existência de um mecanismo estratégico que tratava de enviar devidamente a batalhas impossíveis todo o aparato material considerado “descartável”, dentre estes os negros. Mas, o principal é refletir sobre um filme que quebra com o elo afetivo entre nação e homem, com a idéia reificada de “orgulho americano”. A indústria elaboradora da cultura como produto, seja na forma de livros, músicas e, neste caso, filmes, se detém a reproduzir aspectos de interesse das elites relacionadas e alimentadoras da manutenção desta mesma indústria. Um exemplo básico desta relação de confiabilidade entre indústria cultural e seus idealizadores são os diversos filmes onde o “orgulho americano” aflora como arma eficaz na “união” da nação. Esta condição vai das cores do herói mais forte que já existiu, o super-homem, desde o homem-aranha, capitão América ou a mulher maravilha, até as cores do inusitado pica-pau, astro dos desenhos animados. Porque, nos filmes de guerra, os americanos sempre são aqueles a quem a história se retrata como protagonistas de atos heróicos? Qual o motivo de não retratarem, pelo menos com frequência, a história dos italianos na guerra, dos franceses ou quem sabe até vietnamitas? Quem já viu uma família tão perfeita quanto a família americana? Logicamente que estas respostas são fáceis de serem identificadas. A indústria de filmes e séries alcançou grande êxito nos Estados Unidos, no que se refere especialmente ao desenvolvimento no automatismo de suas formas de elaboração, conquistando o mundo com lendárias super-produções na era da Tele Comunicação como meio eficaz nas interações, antes nunca vistas ou “bancadas” por qualquer país. Então, é possível que esta indústria retrate aspectos que se contraponham aos interesses de uma elite concentrada? Como afirmei anteriormente, é no mínimo improvável. Assim, nas condições supracitadas, imagine um soldado americano, em plena segunda guerra mundial, afirmar: “(...) Eu amo a Itália!” (pelas condições anteriormente citadas de marginalização da “raça” dentre os próprios companheiros etc.). Com isso, convido-te a degustar “Milagre em Santa Anna”, onde os milagres não ocorrem apenas na trama mas, aparentemente, durante a idealização de Spike Lee e James McBride, principalmente por provarem que nem tudo está perdido e que a indústria da cultura de massas ainda não vendeu completamente o direito pela verdade nua e crua. Aqui, é um garoto italiano o “enviado de Deus”, um fugitivo alemão salvador, além de soldados que gostariam de servir a outro país. Aqui, as orações de outras culturas em diferentes línguas possuem o mesmo valor. Quem sabe um início para a quebra de padrões que nos aprisionam num falso estereótipo? Quem sabe uma alternativa para o distanciamento da alienação a muito imposta pelas forças dos interesses mercadológicos atuais? Não sei! Só sei que neste filme o soldado americano branco de alta patente não é o mocinho.









Assista ao trailer:







Estudante de Ciências Sociais, pela Universidade Federal de Alagoas. Agente de Desenvolvimento, pela Secretaria de Indústria, Comércio e Turismo, na cidade de Murici/AL. Integrante do blog Sociedade Encena (www.sociedadeencena.com).

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