Não era só por água encanada.
Por que a luta de Leila configura a luta pela democracia?
Dirigido
por Radu Mihaileanu (diretor de filmes como “Trem da vida”, “Um Herói do Nosso
Tempo”, “O concerto”, entre
outros), com roteiro de Alain-Michel Blanc e do próprio diretor; “A fonte das mulheres”, que foi lançado
em 2011, na França, é um filme produzido por Luc Besson, Denis Carot e Gaetan
David, distribuído pela Paris Filmes com classificação indicativa não
recomendável para menores de 14 anos.
Este filme pode
ser analisado a partir de três perspectivas: a das mulheres, a dos homens e a
do Estado juntamente com a religião. Todavia, é necessário tentar entender o
contexto social do cenário do filme.
Em
uma aldeia norte-africana, que sofre com a seca, sem água encanada, energia
elétrica e de condições econômicas precárias – ela era sustentada,
principalmente, por doações dos turistas –; enquanto uma mulher dá à luz a um
filho homem (recebido com festa), outra, nas montanhas, perde o bebê que gerava
ao cair quando se esforçava para trazer água da fonte e abastecer sua casa.
A
questão feminina já aparece, desde o início do longa-metragem, enraizada numa
cultura machista, com bases em tradições antigas e fundamentadas em argumentos
religiosos que ajudam a manter uma espécie de hierarquia social, onde os papeis
femininos e masculinos são especificados e distintos entre si. E é esse
contexto que torna evidente os principais papeis da mulher naquela sociedade:
procriar e cuidar do lar.
Era
tradição, naquela aldeia, que as mulheres buscassem água na fonte porque elas
eram as responsáveis por cuidar do lar. Em contraste com essa situação, também
pelo que conta a tradição, o esforço dos homens se dava na procura de um
trabalho que pudesse trazer renda para a família. Numa situação mais extrema,
que possa ser comparada ao esforço físico desempenhado pelas mulheres, os
homens iam para as guerras a fim de proteger sua comunidade, oferecendo sua
própria vida se fosse necessário. Se olhada por essa perspectiva, a tradição
oferecia uma condição perigosa a ambos os gêneros.
Entretanto,
com o passar dos anos, se muita coisa na vida das aldeias daquela região havia
mudado, a tradição permanecia a mesma. Pelo menos, no que se refere à condição
da mulher. Era real que não havia mais guerras, e assim, os homens não
precisavam mais sacrificar suas vidas pela segurança de suas famílias e de sua
comunidade. Alguns deles ainda continuavam indo para a cidade em busca de
dinheiro – afinal, todos precisavam comer, e as crianças (pelo menos os meninos)
precisavam estudar; outros, porém, nada faziam além de passarem o dia no bar
bebendo chá e jogando cartas. No caso das mulheres, que desde antigamente,
geravam bebês e carregavam água, nada mudou. Quer dizer, nada até Leila
(personagem interpretada por Leïla Bekhti) aparecer.
Ela
não havia nascido naquela aldeia, mas havia se casado com Sami, personagem
interpretado por Saleh Bakri,
e consequentemente passou a fazer parte daquela comunidade. Foi ela, com o
apoio do marido e de outra personagem conhecida como “Velho Fuzil”
(interpretada por Argelina
Biyouna) quem começou os questionamentos sobre a tradição, sobre o papel da
mulher e sobre sua imagem frente aos homens e à religião – desencadeando
indiretamente, um papel importante perante o Estado.
Revoltada com mais uma mulher que
perdeu o filho que esperava, a personagem afirmou que eram os homens quem
deveriam buscar água porque eram mais fortes e não sofreriam tanto com esse
esforço quanto as mulheres. Leila destaca, e Velho Fuzil reafirma, que outras
mulheres já perderam seus bebês antes, e se os homens se recusassem a
ajuda-las, todas deveriam fazer uma “greve de amor” até que eles decidissem ceder.
Sua ideia, no entanto, não é bem recebida pelas outras mulheres da comunidade,
e elas se recusam a fazer parte da resistência idealizada pela esposa de Sami.
Só a título de informação, é importante
destacar que quando uma mesma mulher perdia com frequência o filho que estava gerando,
ela era considerada por seu marido, e pela família dele, uma mulher estéril,
uma mulher de ventre seco, e, ou era repudiada ou era obrigada a ver seu marido
casando-se com outra. Também a título de informação, a educação básica era
prioridade para os homens. Sami era professor na aldeia e, particularmente,
lutava para que tanto as meninas quanto os meninos, tivessem acesso a ela.
Naquela sociedade, não era necessário que uma mulher soubesse ler e escrever.
As meninas eram mais úteis ao lado de suas mães, aprendendo a cuidar do lar. Se
uma menina frequentasse a escola, poderia, no futuro, desejar continuar com os
estudos na cidade e, dessa maneira, quem desempenharia os serviços da casa? –
essa questão ajudava a fortalecer a hierarquia social daquela aldeia.
Quando a “greve de amor”
definitivamente começou, Leita contava apenas, ou principalmente, com o apoio
de seu marido e de Velho Fuzil. Ao decorrer do filme, esse quadro mudou, mas
não o suficiente para fazer do movimento tão grande e tão visível quanto
deveria ser.
Os homens da aldeia enxergavam a greve
das mulheres como uma afronta à sua autoridade masculina e às leis de Alá.
Muitas mulheres sofreram violências físicas ao aderirem ao movimento. Quando se
negavam a “cumprir seu papel de mulher”, apanhavam e eram estupradas pelos
próprios maridos. Mas ainda assim, resistiram, fazendo os homens recorrerem ao
Imame (Sacerdote mulçumano considerado o guardião da ordem, do respeito às leis de Alá e do Alcorão) da aldeia, pedindo-lhe que
convencesse as mulheres de que Alá desaprovava seus desejos de superar a
tradição.
Este, até o tentou fazer, mas Leila,
diferentemente da maioria das mulheres, sabia ler, sabia escrever (foi Sami
quem a ensinou), e pensava por conta própria. Quando Imame tentou legitimar as
agressões dos maridos – dizendo que Alá sabia o que pedia aos homens, que o
castigo não devia ser violento, mas de caráter educativo e afetivo – baseando-se
nas escrituras do Alcorão, foi baseada no mesmo livro que a personagem de Bekhti (que a interpretou
brilhantemente, diga-se de passagem) mostrou que na verdade, era de igualdade e
de uma convivência fundada na paz que as leis de Deus falavam. Sendo assim,
tudo que se mostrasse diferente disso era uma interpretação, um “desvio da
escritura por interesses pessoais”.
Não
era só por água encanada! Tampouco para elevar às mulheres ao “lugar dos
homens” que Leila lutou. A personagem desejava respeito e amor. Desejava que
entre elas e os homens, existisse uma convivência baseada na paz, na igualdade.
Ela queria que todos se ajudassem. Por que, então, a luta de Leila configura a
luta pela democracia?
Em
“A democracia pode ser qualquer coisa?”,
de Giovanni Sartori, a democracia aparece como uma teoria cujo significado é
vasto. Contudo, de uma maneira mais simplificada, o autor a define como um
governo onde o poder está nas mãos do povo. De uma maneira mais aprofundada,
Sartori explica que quando se fala em democracia, não se fala apenas em seu
significado semântico, mas também no que ela representa.
É
justamente a vastidão de seu significado um dos maiores problemas da
democracia. À medida que todos se declaram democráticos, ela pode parecer
significar qualquer coisa. Mas não é bem assim! “Uma democracia só existe à
medida que seus ideais e valores dão-lhe existência” (SARTORI, 1994).
Anteriormente,
afirmei que o filme poderia ser analisado a partir de três perspectivas:
mulher, homem, estado-religião. Descrevi a situação dos papeis femininos e
masculinos baseados em tradições religiosas que configuravam uma espécie de
hierarquia social. Se essa tradição legitimava a permanência das mulheres na
busca da água, quando os homens há muito haviam participado de guerras, quando
o Estado começa a fazer parte dessa discussão?
Em
prol da implantação da água encanada nas aldeias, os homens do filme haviam
enviado uma licitação ao Estado pedindo que certa atenção fosse dada ao
assunto. Até então, nada foi feito. E estes não voltaram a solicitar melhorias.
Quando as mulheres se mobilizaram e exigiram que os homens buscassem a água,
ameaçando não cumprir o “seus papeis obrigatórios”, a “afronta à autoridade
masculina” desempenhada pelas mulheres, parecia mais importante e muito mais
grave do que a omissão do Estado nas tarefas que, realmente, lhe eram
obrigatórias.
Em
uma cena do filme, o personagem que representa o Estado, afirma que existiam
outras prioridades, e cita a energia elétrica como exemplo; ele afirmava que
esta já o custava bastante. Fazendo uso da tradição para camuflar sua
ineficiência, o personagem-Estado alegava que quanto mais demorada a chegada da
modernização na aldeia, melhor seria para os homens. Afinal, se as mulheres
mantinham-se ocupadas carregando a água, menos tempo teriam disponível para
ficarem ao telefone, ou não pensariam em desejar máquinas de lavar (ou seja,
menos despesas).
Quando
as mulheres conseguiram a ajuda de um jornalista que estava na cidade, fazendo
com que sua causa tivesse um alcance maior do que dentro da própria aldeia, foi
que o Estado tomou uma decisão. E não por compreender que era seu papel
assistir aquela comunidade, mas temendo que as mulheres de toda região se
unissem em solidariedade àquela aldeia e juntas, exigissem muito mais do que
água encanada.
Se
assim como aparece no texto de Giovanni Sartori, a democracia é um governo cujo
poder está na mão do povo, a mobilização liderada por Leila configurou uma luta
por democracia. Independentemente do motivo real que levou o Estado a implantar
um sistema de tubulação na aldeia, começou com aquela mobilização. É claro que
essa configuração teria muito mais peso, muito mais significado, se tivesse
tomado proporções maiores na região. Mas o importante é que Leila lutou pelo
bem de seu gênero (o que também beneficiou ao gênero oposto). De uma maneira
geral, Leila lutou pela sua comunidade, logo, foi democrática.
O
vasto significado atribuído à democracia pode desestabilizar sua eficiência,
mas olhando com um pouco mais de atenção para “A fonte das mulheres”, podemos claramente enxergar que o que
realmente desestabiliza uma democracia é a segregação de seu povo.
Enquanto
os homens se julgavam superiores às mulheres, e a tradição cultural mantinha a
hierarquia social configurada na distribuição dos papeis de gênero de maneira
que afirmasse a posição masculina de superior, não houve melhoria. Mesmo que
seja obvio que o motivo maior do Estado foi o medo da epidemia de
conscientização entre as mulheres.
Para
os homens, enquanto seu lugar de superior dentro da sociedade era assegurado,
pouco importou se a aldeia tinha um sistema de tubulação – não era porque as
mulheres viam torneiras na TV, que a aldeia precisava delas. Eles haviam
enviado uma licitação há dois anos, mas não foi atendida, o que podiam
fazer? Foi preciso que uma mulher, capaz
de desconstruir um paradigma social, se valendo de seu conhecimento, e podendo
se basear na mesma fonte que os homens usavam para aprisionar seu gênero,
trouxesse a mudança.
Então,
pode-se afirmar que o conhecimento também legitima a democracia. Se dentro de
uma sociedade onde os papeis sociais são hierarquizados em dominadores e
dominados, onde o só o dominador tem acesso ao conhecimento que alimente seus
ideais e seus interesses pessoais, o conhecimento ampliado (no sentido de
também pertencer aos dominados) é o caminho para a democracia, uma vez que ela
“resulta de interações entre seus ideais e sua realidade e é modelada por elas:
pelo impulso de um deve ser e pela
resistência de um é.” (SARTORI,
1994).
Recomendo
este filme não só por seu conteúdo social-político próprio para discussões
social-políticas. Recomento este filme porque sua produção é de uma delicadeza
incontestável, repleto de interpretações maravilhosas, fiel a uma realidade e,
principalmente, despretensioso politicamente, pelo menos de uma maneira direta.
(autora: Francielly
Guimarães – fraanguimaraes@live.com)
Confira o trailer
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