Gonzaga - de Pai para Filho


Um filme que não puxa sardinha para o lado de ninguém e que narra quase que fielmente a trajetória de dois grandes expoentes da música popularíssima do Brasil. Essa seria uma boa descrição para adequar ao longa-metragem dirigido pelo premiado Breno Silveira - Dois Filhos de Francisco (2005); Eu, Tu, Eles (2000) –, lançado recentemente nas galerias de cinemas de todo o país. Um produto muito bom, que arrancou aplausos do público e algumas lágrimas dos mais emocionados na sala em que não me arrependi de entrar. Com uma fotografia divinamente peculiar do nordeste, uma excelente produção e uma atuação bastante agradável de Júlio Andrade, Gonzaga – de pai para filho (2012) é um daqueles filmes que entram para o hall das produções que ganharam grande destaque por homenagear figuras extremamente famosas da vida real, mas que também não perde o foco e não deixa de acrescentar nos quesitos detalhes técnicos e originalidade.

Gonzaga conta os acontecimentos de vida de Luiz Gonzaga do Nascimento, sua história e as consequências diretas e profundas dela, relativizando com um emaranhado de pessoas, lugares e poesias. Comecemos pelo princípio. Vivendo no Nordeste, mais exatamente na cidade Pernambucana de Exu, a vida era dura, sofrida, desde 1912, ano de seu nascimento. Gonzaga morria de amores por Nazarena, filha do coronel Raimundo Deolindo, temido na região pela sua influencia social e econômica, e que não tinha muita simpatia pelo mulato. Ameaçado e impossibilitado por esses e outros motivos de encontrar e viver com sua amada, Lula, como era assim carinhosamente chamado pela família, decide ganhar o mundo, vencer na vida. Carregando seu acordeom, uma herança cultural do pai Januário, deixa a pacata Exu. No entanto, o “vencer na vida” de Lula era simples; o do mundo, não.
O ano era 1929, período de mudanças políticas para o mundo e, de nosso interesse, para o Brasil. Um ano de decisões, de revoluções, de conflitos. Para conseguir dinheiro longe do seio familiar, agora Gonzaga necessitava encontrar outros afazeres que não tocar acordeom em festas de forró pé de serra do Coronel Raimundo. A forma mais acessível de se sustentar seria por meio de alistamento no exército, serviço que estava sendo bem procurado na época. A revolução armada de 1930 estava prestes a explodir e a inquietação era constante. Nestes instantes, Gonzaga esquece a música, deixa de lado o seu talento, herança tradicional. Porém, não participa do evento militar. Engenhoso, como sempre foi, consegue ser preso durante os acontecimentos da revolução, assim, não compartilhando daquele momento enquanto soldado. E por dez anos de serviço em um batalhão do Exército, se distancia da poesia de sua terra, das raízes do sertão nordestino e do acordeom tão bem tratado durante tanto tempo. Em 1939, em atuação na cidade do Rio de Janeiro, Lula pede dispensa do Exército Brasileiro. O interesse pela música havia timidamente voltado, mesmo que ainda não pela razão correta. Nos dias e nas noites cariocas, geralmente em locais comuns de prostituição, áreas periféricas da cidade, lá estava Luiz Gonzaga tocando choros, sambas, foxtrotes, dentre outros temas musicais típicos da época. Em uma destas ocasiões, conhece a cantora/dançarina Léia dos Santos, uma chamativa mulher por quem se apaixona. Sabe-se, de outras fontes, que Léia havia sido expulsa da casa dos pais por ter engravidado do então namorado, o qual se recusou a assumir a paternidade da criança. Mesmo antes do início de seu relacionamento com Gonzaga, já estava grávida, e o pernambucano sabia disso, decidindo, portanto, - apesar de apenas se tratar de um caso amoroso - tomar para si a responsabilidade. Luiz Gonzaga do Nascimento Junior, o Gonzaguinha, nasce no ano de 1945, período em que Gonzagão começa a sair um pouco do anonimato, se apresentando em programas de rádio e gravando composições do sertão, de autoria própria.
Em 1948, Léia chega a falecer vítima de tuberculose, deixando o filho com apenas dois anos de idade. Talvez seja a partir deste fato que o foco do filme ganhe alguma direção. Gonzaguinha, agora sem rumo, é rejeitado pela então esposa (oficial) de Gonzagão, Helena Cavalcanti, e passa a viver com os padrinhos Leopoldina e Henrique (que também ajudaram na estabilização de Lula no Rio), o que traria trauma e revolta para o menino posteriormente. O sentimento de abandono crescia juntamente com Gonzaguinha e a relação conturbada com Helena o separava ainda mais do pai. Gonzagão, tomando partido da esposa, não viu alternativa senão levar o garoto para um colégio interno, onde permaneceu por quase uma década, longe de tudo. A fixação do pai para que o filho obtivesse um “anel de doutor” percorre toda a história de ambos, ao passo que gera conflitos. Tal antipatia é parcialmente superada muito mais tarde, com Gonzaguinha já formado em Economia e fenômeno da MPB, e seu pai longe dos grandes palcos, mas famoso em seu nordeste.   

Cinema com uma pitada de ciência

O longa-metragem traz um mais recente formato de exposição de enredo, flexibilizando flashbacks a fim de explicar a contextualização da trama. Neste sentido, Gonzaguinha encontra o pai por volta de 1981, que destrincha os acontecimentos supramencionados, transmitindo valores e, acima de tudo, justificativas para o rumo que tomaram suas vidas. O circuito do roteiro é ainda condizente com esses contextos, que servem de plano de fundo para a teatralização dos fatos abordados, como nos apontaria Erving Goffman. As vidas de Luiz Gonzaga e de Luiz Gonzaga Júnior, aliás, estão entrelaçadas com importantes eventos históricos do Brasil. No caso de Gonzagão: a forte identificação com o movimento banditista-social do Cangaço, tomando aqui as definições do historiador Eric Hobsbawm, era muito grande, onde considerava assim imperfeições e injustiças da sociedade que passava por uma transformação estrutural acentuada - a transição que partia de um sistema tipicamente tradicional para uma forma de vida industrial-capitalista; o alistamento de Lula no exército brasileiro, num período que se caracterizou por um agressivo incentivo ao ingresso nas forças armadas, acontecimento marcante antes da revolução de 1930; o aspecto da distribuição espacial na cidade, intensamente trabalhado pela Escola Sociológica de Chicago, que pauta a localização dos pobres na metrópole como fruto das interações, neste caso, quando Gonzaga chega ao Rio de Janeiro; o processo de Ruralização, isto é, características próprias do campo que são inseridas na identidade da cidade, nesta direção, quando Gonzaga vai para a TV mostrar o forró pé de serra tradicional do interior de Pernambuco para uma metrópole sudestina.
No caso de Gonzaguinha: a formação universitária que possibilitou uma visão mais crítica da realidade política brasileira, culminando na atividade opositora ao regime militar que se impôs no país a partir de 1964, objeção demonstrada quer seja em forma de música, quer seja em forma de ativismo. As histórias de vidas particulares de ambos os artistas estão entremeadas com a história geral do Brasil. Basta apenas lermos nas entrelinhas das interações, nos circuitos os quais percorre a sociedade.

Vale a pena ver?

Em minha modesta opinião, Gonzaga – de pai para filho é um filme quase completo. Bom roteiro – quando analisamos a fidelidade quanto à obra original -, um bom elenco (com Adélio Lima, Nivaldo Carvalho, Zezé Motta e Claudio Jaborandy), destacando especialmente a atuação de Júlio Andrade, e uma fotografia impecável. Confesso que, num primeiro momento, hesitei em conferir de perto essa história bacana de uma relação conturbada entre pai e filho. O fato de não ser lá muito fã do estilo musical forró, fechara meus olhos preconceituosos para um filme prazerosamente satisfatório. A surpresa, de claro modo, fora muito agradável, revisitando parte da história da MPB e desbravando o que antes não era sabido de todos. 

Trailer oficial de "Gonzaga - de Pai para Filho"


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