Assisti recentemente Amor e Anarquia (Itália, 1973), de Lina Wertmüller, e fiquei enamorado – literalmente. Deu até vontade de chegar para a diretora, dar-lhe um abraço e dizer: muito obrigado!
Amor e Anarquia é de uma beleza espetacular, a qual está presente desde o figurino até os diálogos desconcertantes. De Wertmüller já havia assistido um outro clássico, Mimi, O Metalúrgico, que, a meu ver, apresenta uma das melhores representações cinematográficas da cooptação política dentro do capitalismo. Após este primeiro contato com a cineasta fiquei interessado em conhecer outras obras suas. Foi ai que encontrei, dentre outros, Pasqualino Sete Belezas e Amor e Anarquia, tendo visto, por enquanto, apenas o último. Um texto tão pequeno como este é incapaz de abarcar todas as sutilezas de Amor e Anarquia, entretanto, fica o esforço de mostrar em linhas gerais sua temática, que a meu ver é mais atual do que nunca.
Um dos personagens principais do longa é o camponês Tonino, interpretado pelo convincente Giancarlo Giannini. Tonino é ligado aos anarquistas, e sai do interior da Itália com direção a Roma, onde pretende matar Mussolini. Na “cidade eterna” ele conta com o apoio de uma prostituta chamada Salomé, que ganha vida na interpretação da belíssima Mariangela Melato. Salomé acolhe Tonino no bordel onde trabalha, dizendo a todas as suas companheiras que ele é seu primo e que veio somente passar alguns dias com a parenta.
Aos poucos o espectador vai percebendo os vínculos que unem pessoas como Tonino e Salomé. O primeiro decide matar o ditador italiano como vingança pela morte de um grande amigo seu, um libertário assassinado pelos lacaios do fascista. A segunda também quer vingança, pois uma pessoa muito ligada a ela fora morta devido ao sistema totalitário que fora implantado no país.
O desejo de vingança aos poucos vai mostrando sua verdadeira identidade. Trata-se não apenas de “reclamar o sangue derramado”, mas de exigir justiça e liberdade, de mostrar para os ditadores, quais sejam seus países, que o povo pode reagir às suas atrocidades e lutar pelo bem comum.
Frase inquietante é uma de Tonino quando apresenta a uma interlocutora sua a razão de decidir matar Mussolini. Ele diz: “porque alguém um dia tem que gritar ‘basta!’”
O operário Tonino e a prostituta Salomé personificam o povo simples, que é enxovalhado por um governo injusto e autoritário. Povo esse que quer resistir, que mesmo sem elementos o suficiente para “derrotar a máquina”, prefere morrer clamando por equidade a viver em silêncio.
Outra personagem muito importante no filme é Tripolina, prostituta por quem Tonino se apaixona. Lina Polinto faz uma Tripolina generosa, com um coração sofrido mas capaz de amar. A relação com Tonino é tensa desde os primeiros momentos. Ele a deseja com todas as suas forças, entretanto sabe que tem uma missão arriscada, a qual pode ser um problema para o seu envolvimento com Tripolina. Esta também quer ficar com Tonino, mas ao descobrir sua tarefa política teme por ela e por um amor que pode vir a ser sufocado nos porões do fascismo.
O amor de Tonino e Tripolina representa, em minha concepção, um protesto contra a desumanização presente nos sistemas totalitários. Isso fica claro quando, num quarto, Tripolina e Tonino prestes a se amarem, aquela o incentiva a agir como os seus clientes, com grosseria, sem “romantismos”, sem afeto; Tonino, pelo contrário, expressa respeito pela parceira, dizendo que “isso”, a relação que está para acontecer, “pode ser mais bonito”.
Não cabe aqui dizer se Tonino cumpre ou não o seu projeto, mas uma coisa que a obra de Wertmüller consegue fazer é despertar em nós o senso de humanidade que vem sendo soterrado já há muito. Tonino nos mostra que ter ideais nunca será démodé, e que, ciente de sua força, o povo tem um grande potencial transformador.
Charles dos Santos
Assista ao trailer:
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