The Help (Histórias Cruzadas): sobre ajudantes negras e patroas brancas


Há alguns meses, conheci uma mulher que trabalhava como babá na casa dos meus tios. Ela tinha um bebê de um ano, que ficava sob o cuidado de parentes no interior. Ela passava a semana na cidade, cuidando de minha prima recém-nascida. Ela estava com febre. Motivo: seus seios estavam cheios e ela não poderia amamentar seu neném, porque morava longe e estava no trabalho. Tinha que tomar remédios para esvaziar o leite.

Já na casa da minha mãe, uma diarista contou que anos atrás acabara de dar à luz sua bebê, quando surgiu uma oportunidade de trabalhar na casa de alguém. Seguiu para a entrevista, mentiu que tinha filho pequeno, e dias depois foi descoberta. Felizmente, acrescentou, não a demitiram - desde que a bebê 'não atrapalhasse' seu trabalho.

Lembrar dessas duas experiências e de zilhares outras que acompanhei - convivendo com babás e empregadas domésticas, lendo sobre a condição de mulheres que cuidam de sua casa ou de outras pessoas, e lidando com minha própria condição, seja como dona de casa, seja como jornalista- fez com que The Help me arrebatasse logo na primeira cena, quando a aspirante a escritora Eugenia Skeeter  (Emma Stone) faz a seguinte pergunta à empregada Aibileen Clark (Viola Davis):

"Como você se sente cuidando de uma criança quando seu próprio filho está em casa, sendo cuidado por outra pessoa?"

Mal sabia que, ao longo do filme, questões muito mais complexas viriam à tona. Em meio à luta por igualdade racial liderada por Martin Luther King e as respostas violentas que se refletiam na explosão de políticas de segregação, na década de 1960, o racismo institucionalizado fazia de Mississipi um dos estados mais hostis. E toda a trama foca, por fim, na narrativa de mulheres de uma pequena e retrô cidade, Jackson, onde negras pobres empregadas conviviam om brancas ricas patroas.

Tudo bem que Eugenia quis escrever a história das domésticas de Jackson. O problema é que negros não podiam se reunir com brancos, não podiam denunciar maus tratos, não podiam entrar pela porta da frente. Falar de suas vidas era uma subversão intolerável.

Várias questões de gênero são cruzadas ao racismo latente: por exemplo, o estranhamento imposto pelas antigas amigas contra Eugenia, por ter decidido partir para a universidade e se tornar jornalista e escritora, ao invés de tomar o destino comum de todas as mulheres ali - casar-se. Ou também o isolamento contra Celia Foote (Jessica Chastain),porque não correspondia aos padrões tradicionais daquelas mulheres, e a pressão que fazia a si para aprender a cozinhar e engravidar. O drama que se mistura às cenas de humor é latente, sobretudo, com a situação de Minny (Octavia Spencer). Ousada em várias situações (o que inclui a torta com seu ingrediente especial enviado à ex-patroa megera),  havia também um lado obscuro: a violência doméstica.

Certo que as histórias são cruzadas, mas como todas as linhas que se cruzam, essas também partem de pontos distintos... e as distinções se colocam à mostra para que não queiramos, nem de longe, nos enganar. Ao falarmos em desigualdade, é preciso ter em vista a desigualdade de gênero. E mesmo que falemos em desigualdade de gênero, ainda assim não podemos generalizar: a condição de mulher é permeada por dificuldades. Mas é muito, muito mais difícil ser mulher negra e pobre. 

Por exemplo, olhemos para dentro de casa,  como todo o sistema se estende pelo espaço do imóvel, com a lógica da 'dispensa'. O filme mostra com bom destaque como se construiu a ideia do banheiro segregado da empregada. O objetivo? evitar as doenças que as negras pudessem passar, como argumentou a 'vilã'  Hilly Holbronk (Brice DAllas Howard). 

No mais, naquele contexto (e não só), grupos racistas e nazistas agrediam e matavam negros, em resposta  aos direitos conquistados durante as lutas de Martin Luther King.  Em que pese a cena angustiante de Aibileen sendo expulsa do ônibus a noite, o que a fez correr até chegar em casa, temendo ser atacada por integrantes da Ku Klux Klan.

O drama também cruza épocas. Assim como muito daquele momento é presenciado hoje, o relato de uma doméstica que foi mencionada como 'herança' por seu patrão falecido nos leva no mínimo a duvidar que a escravidão seja coisa do passado.  

Havia sugestões e relatos chocantes que se misturavam à leveza de um humor dramático, mas o ápice, ao meu ver, se deu em um detalhe. No início, Eugenia parecia protagonizar a trama por ter abandonado e enfrentado a zona de preconceito e decidido escrever sobre as empregadas. No entanto, um pouco hesitante, Aibeleen pede para entregar seus escritos à Eugenia: "é como se fossem minhas orações", diz. E a gente entende claramente quem protagoniza essa história:

  A gente entende quem realmente abandona a zona de (in)conforto ao ver suas amigas, irmãs, violentadas continuamente; ao ver o filho morrer em um acidente de trabalho porque todos foram absolutamente negligentes em socorrê-lo. The Help é a história das ajudantes que falam sobre si, e não da mulher branca que fala sobre elas:  é a história das mulheres negras que trabalham 'ajudando' as patroas brancas. Para sobreviver, precisam ajudar umas às outras.

Aibeleen enfrenta todo os riscos ao tomar para si a responsabilidade de escrever o livro com Eugenia. Os absurdos enfrentados pelas empregadas domésticas de Jackson levam a um estopim, e elas decidem falar elas mesmas sobre suas vidas. Essa para mim é a grande sacada. Há jornalistas, escritores, pesquisadores aos montes falando sobre a vida de quem é vítima das opressões.. mas não há dúvida de que a voz toca muito mais quando a ouvimos diretamente de quem as sofre, ainda que de forma anônima.

Foi em 1960, em um cidade conservadora dos Estados Unidos da América. E o drama é fictício. Mas também é 2015, É aqui. E é uma realidade.

Jornalista, estudante, blogueira desnaturada e mãe do Javier.

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