Vida Moderna


Um dos mais belos filmes que vi em 2009 foi As Invasões Bárbaras (Canadá, 2003), do cineasta Denys Arcand. A produção, entretanto, não é de 2009, e sim de 2003. Merecidamente, As Invasões Bárbaras ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro no ano de 2004, além de receber o Prêmio de Melhor Roteiro em Cannes no ano de 2003. Marie-Josée Croze, que atuou de modo magistral no longa, também foi destaque no Festival e recebeu o prêmio de Melhor Atriz. O filme reúne os personagens de outra grande obra de Arcand que foi O Declínio do Império Americano, lançado no ano de 1986. As Invasões Bárbaras proporciona, desta forma, o reencontro de amigos para que possam pensar e repensar o que foi experimentado no decorrer de suas vidas.
O reencontro acontece devido ao adoecimento de Rémy, o qual se vê abatido por um câncer raro. Seu filho, Sébastien, é quem consegue trazer para junto do pai aquelas pessoas com as quais Rémy conviveu de modo mais intenso nos anos que antecederam sua enfermidade. Com os amigos reunidos, vêm à tona vários fatos que marcaram a vida de cada um, de modo particular a de Rémy, que sendo um homem cheio de convicções tidas por libertárias, não chegou a ser um esposo e pai que se aproximem do perfeito.
O filho, Sébastien, é que mostra de modo mais claro a marca da tensão existente em sua família, pois mesmo com o pai doente não consegue esconder deste suas opiniões contrárias em vários assuntos. No desenrolar-se do filme o que se nota é que mesmo tendo idéias totalmente distintas, Sébastien e Rémy apresentam-se como admiradores incontestes um do outro, talvez por Rémy representar para o seu filho a alegria de viver e a força que brota do compromisso com um ideal, enquanto Sébastien dá a conhecer a seu pai a importância do esforço e da dedicação na busca pela realização como indivíduo. Durante sua vida, Rémy defendeu apaixonadamente o Socialismo, e a meu ver, aquelas virtudes que despertam a estima do seu filho estão ligadas à sua crença nesse projeto. Sébastien, por outro lado, é um típico sujeito capitalista, e aquilo que dá ao pai como ingrediente para o orgulho deste é nada mais nada menos que aquelas virtudes tão benquistas no atual sistema de produção. Acima ou além destas virtudes está a gratidão, tanto de Rémy, por ver Sébastien esforçar-se admiravelmente para que seu pai passe os últimos dias com dignidade junto dos seus amigos, quanto de Sébastien, que ver no pai alguém que foi capaz de renunciar coisas ou momentos importantes para que seu filho gozasse de saúde e vivesse bem.
O filme de Arcand apresenta elementos muito ricos para o debate sobre assuntos variados. Quero, contudo, destacar alguns tópicos referentes à modernidade e à modernização, trabalhados pelo cineasta de modo bastante clarividente. Um desses tópicos é o desencantamento do mundo, patente em algumas falas de Rémy e em comportamentos deste e de outros personagens. Em um determinado estágio da trama, Rémy afirma que seu grande problema foi não ter achado um sentido para a sua vida. Mesmo crendo no projeto socialista, o personagem não viu nisso algo que pudesse preenchê-lo, dá-lhe as armas necessárias para encarar com uma postura mais positiva a vida. Entre lágrimas, aquele homem tido por gozador e aventureiro, mostra a seus próximos que por muitas vezes foi vencido pelo desencanto. Este é um aspecto muito marcante dos tempos modernos, sendo apontado de modo muito esclarecedor pelo sociólogo Max Weber, dentre outros estudiosos. Afirma o mencionado sociólogo alemão que há na modernidade um constante desenvolvimento da racionalização e do intelectualismo. Tal fator coloca o homem numa verdadeira “saia justa”, pois instituições tradicionais já não são capazes de dar a última palavra acerca do modo de “viver bem”. Weber chega a afirmar que na modernidade o homem pode até cansar da vida, mas nunca saciar-se dela, pois são muitos os caminhos apresentados e as possibilidades de se encontrar prazer, mesmo que seja por pouco tempo. Rémy encarna bem essa problemática, pois a falta de sentido da sua vida não pode ser explicada apenas pelo seu fracasso diante desta empreitada, mas pelo tipo de socialização com a qual a modernidade presenteia as pessoas.
Outro tópico, que não deixa de estar atrelado ao primeiro, é o da “crença” na modernidade. Sabe-se muito bem que não se pode falar em uma “modernidade boa” ou uma “modernidade má”, mas apenas em modernidade. Entretanto, o debate sobre os “progressos” trazidos pela modernização é muito intenso, o qual coloca a modernidade na berlinda e avalia as suas premissas como caminho para uma ação política mais acertada. Alguns sociólogos, mesmo reconhecendo as tragédias introduzidas pela modernidade, são enfáticos ao sustentá-la como um tempo e um modo de vida bem melhores do que outros passados. O próprio Rémy, que sendo professor universitário não me pareceu ensinar Sociologia, traz dados que mostram outros períodos da história de forma bastante negativa. Um desses dados é o número de indivíduos mortos pelos colonizadores, que conforme Rémy, alcança a casa das 200 milhões de pessoas. Para ele, “a história da humanidade é uma história de horror”, o que o faz menos otimista do que certos sociólogos, já que em sua visão crueldade e desrespeito sempre estiveram presentes nas diversas sociedades. Sem o intento de adentrar na discussão contraproducente sobre o fato da modernidade ser boa ou não, quero destacar aqui que o diferencial da época moderna é o constante uso de técnicas inovadoras para a realização de objetivos um tanto execráveis. Anthony Giddens, conceituado sociólogo inglês e importante teórico da modernidade, fala de uma “industrialização da guerra”. O que ele nos dá a entender é que o massacre, a tragédia, encontraram nas inovações técnicas um forte aliado nos “tempos modernos”. O que falar, por exemplo, da bomba atômica? ou da avançada indústria de armamentos, que todo ano fornece armas as mais potentes aos países em conflito? “Vida Moderna”, música de um dos melhores grupos Underground de rock do Brasil, Charme Chulo, expressa muito bem esse novo “estado das coisas”. Diz a letra que (...) com um comando após o outro tudo apaga, quem viverá, quem vive e quem viveu.
O filme ainda trata de temas polêmicos, como a questão do uso de drogas e da prática da eutanásia. O recorte feito tem como objetivo apenas chamar a atenção para um dos aspectos que tornam As Invasões Bárbaras um dos maiores feitos cinematográficos da década. Muito rico no que se refere aos diálogos – são bastante inteligentes – e criando no espectador um produtivo incômodo, o ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2004 merece ser visto e revisto, sobretudo por quem acredita na amizade e na superação.
P. S.: Também me questionei sobre o título do filme. Sabe-se que a trama se passa na época dos atentados contra os Estados Unidos, e num dado momento um personagem aparece falando a respeito do fato dos “bárbaros” estarem, na contemporaneidade, conseguindo adentrar no “império”, o que representa uma significativa diferença com relação a outros períodos. A análise desses tópicos pode constituir-se numa tarefa bem frutífera.


Charles dos Santos
                                   Texto em PDF para download, clique em:   http://bit.ly/b5Y1JP 
Assista ao trailer:

Buena Pregunta!

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