Um documentário para nascidos vivos: O Renascimento do Parto


Talvez dizer que o Brasil é o campeão de cesarianas não represente tanto um choque a quem ouve ou lê essa notícia desavisadamente. Tá, mas e daí? Talvez dizer que uma a cada quatro mulheres já revelou ter enfrentado algum tipo de violência durante o parto faça um ou outro erguer a sobrancelha. Sério? Como assim violência? 
Talvez por estarmos no mês das Mães ou, talvez, porque nas últimas semanas as discussões a respeito da situação dos nascimentos no Brasil tenham sido revigoradas, é de bom tom apresentar o documentário O Renascimento do Parto a quem ainda não o conhece. E a quem não o conhece, creio que a melhor forma de apresentá-lo é usar a expressão recorrente – que inclusive ilustra sua capa: ele é recomendado para *todas* as pessoas que nasceram.Ou, como brinca Jean Willys, que agora levanta essa bandeira no parlamento, a todxs que não vieram de 'chocadeira'.

Lançado em 2013, o documentário de Érica de Paula e Eduardo Chauvet expõe a realidade obstétrica brasileira: mostra como a maioria das mulheres têm enfrentado o momento do nascimento, como a maioria das crianças têm nascido, mostra como esse momento foi permeado por uma sequência de violência ou de falta absoluta de controle sobre o corpo, tudo dentro de um processo de naturalização da tecnocracia e do (des)controle médico. 
Em nome da tecnocracia, aliás, foram inventadas mais de 100 desculpas para que algo tão natural como parir fosse uma ideia inalcançável e arriscada. A obstetra e pesquisadora Melania Amorim, uma das entrevistadas, cita as principais indicações fictícias que levam tantas mulheres saudáveis a correr três vezes mais riscos de morte – e seus bebês a seis vezes mais – sob os bisturis de uma medicina intervencionista e distante das evidências científicas. São os mitos de que bebê é grande, é pequeno, placenta é velha, cordão está enrolado, faltou dilatação, etc, etc.
Mas nem só de cesarianas vive o caos dessa realidade obstétrica. Quando a mulher passa por um parto normal, repleto de procedimentos, acaba enfrentando o que a obstetriz Ana Cristina Duarte define no filme como uma cascata de intervenções: um procedimento é realizado para remediar um problema que foi causado pelo procedimento anterior – e não pelo parto em si. Obrigar a mulher a ficar deitada, utilizar ocitocina sintética para 'acelerar' o parto, proibí-la de comer, de beber, de ter um acompanhante em todos os momentos do parto (o que é, inclusive, uma lei federal), são algumas das várias formas de agredir a mulher em um de seus momentos de maior vulnerabilidade e de prejudicar e até mesmo impedir o pleno funcionamento do corpo. É o protagonismo feminino defendido com ampla bandeira por Ricardo Jones.
Por falar em ocitocina sintética, vale também o destaque para o neonatologista e pesquisador francês Michel Odent, bastante conhecido por sua máxima: 'para mudar o mundo, é preciso mudar a forma de nascermos'. Entrevistado, Odent vem nos falar sobre um hormônio muito singular que está presente no nascimento, na amamentação, e no sexo: a ocitocina. Ao chamá-lo de 'hormônio do amor', o neonatologista explica que a ocitocina natural é responsável por todo o processo do parto, desde a dilatação até as contrações que ajudam o bebê a deixar o útero materno. No entanto, para que cumpra sua devida função, outro hormônio precisa estar fora da jogada: a adrenalina. No momento em que a adrenalina entra em cena – o que acontece quando a mulher está dentro de um ambiente hostil, como um hospital cheio de regras e profissionais pouco afeitos à humanização – a ocitocina não é liberada, e o parto então é prejudicado. Para compensar essa 'falta' (basicamente ocasionada pelo próprio atendimento hospitalar), médicos então injetam um hormônio sintético, que aliado à adrenalina presente, ocasiona em um verdadeiro desequilíbrio hormonal e fisiológico, e em um parto 'patológico' e totalmente descontrolado dos principais protagonistas: mãe e filho.
No entanto, conforme nos explica a representante da rede ReHuNa, Daphne Rattner, a distorção dessa atenção obstétrica já começa nas faculdades, já começa com estudantes aprendendo que o parto é patológico, uma inversão que já começa, em toda a sua sutileza, a 'justificar' todos os tipos de intervenções e, sim, agressões, para tirar o filho de dentro da mulher – seja como for.
Durante o seminário Faces da Violência contra Mulher, ocorrido na semana passada na Câmara Federal – e que teve a violência obstétrica como um dos assuntos em pauta – a presidente da ONG Ártemis, Raquel Marques, relatou o caso (entre outros extremamente trágicos) de uma mulher que entrou em trabalho de parto prematuramente. Ao chegar no hospital, onde o procedimento correto seria a utilização de medicamentos que protelassem o parto, a vítima se deparou com uma residente que se encontrava no último dia de estágio e não havia passado pela experiência de atender um parto prematuro. O que pesava mais: a saúde e a segurança de mãe e criança ou a experiência da residente??? Tam dam: o bebê nascido prematuro teve  sequelas graves e passará toda a vida com limitações absurdas. Quanto à residente? Palmas para ela que adquiriu a experiência desejada.

O documentário é, em si, um mosaico de detalhes sutis que fazem toda a diferença por sua naturalização. Ao serem tratoradas por um fenômeno de intervenção desmedida, em larga escala, em quase todas as unidades de saúde, as agressões institucionais feita em mulheres no parto alavancam movimentos sociais, feministas, e chegam por fim ao Ministério da Saúde. Representando a entidade, a médica Esther Vilela mostra no documentário como a situação é uma preocupação presente no órgão, que desde 2001 instaura políticas públicas de humanização do nascimento e atualiza suas normativas. Mas será que a humanização têm sido de fato propagada nas maternidades? Isso veremos no Renascimento do Parto 2, que já é uma promessa de Eduardo Chauvet.
Mas neste documentário, a gente ainda vê o outro lado: como é um parto de fato natural, humanizado, respeitoso, com assistência baseada em evidências e no protagonismo feminino. A diferença é absurda e vira todos os nossos pré-conceitos pelo avesso: muda a forma de enxergar a gravidade da epidemia de cesarianas e, finalmente, leva à visibilidade o tabu que o parto 'médico' foi inserido por quase dois séculos. 

Curiosidade: esse filme foi financiado coletivamente por ativistas de todo o Brasil. Mais que isso: teve recorde em crowdfunding no País.
Curiosidade 2: em muitos estados - como em Alagoas, por exemplo - ele só foi exibido porque ativistas locais enviamos e-mails em massa para rede de cinema, levando-o assim ao circuito comercial.


Curiosidade 3: algumas pessoas criticaram o filme por não ter exibido toda a questão 'social' (ahn?) , ou seja, a realidade das maternidades, a violência obstétrica em todas as suas formas. A resposta da direção: gen-te! Era só 1 (um) filme. 
E  olha, minha queda maior com esse tema é, com certeza, a humanização do atendimento como uma questão acessível a todas, mas tenhamos consciência de que não dá para mostrar absolutamente tudo o que permeia o 'complexo' caso da obstetrícia brasileira em um só longa. No entanto, palmas para Chauvet que promete, no segundo filme, trazer tudo isso para gente :) 

Assista a este emocionante documentário

E para maiores informações curta a nossa página no facebook https://www.facebook.com/BlogSociedadeEncena e acesse ao site do documentário http://www.orenascimentodoparto.com.br/

Jornalista, estudante, blogueira desnaturada e mãe do Javier.

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