'É 2014, P*%#@, cadê o respeito?' ou uma reflexão sobre o documentário 'O Riso dos Outros'



Situação número 1: No início deste mês, o Digão, da banda Raimundos, interrompeu o show na cidade de Jaraguá do Sul, para dar uma baita lição de moral em uns indivíduos. Em uma atitude truculenta, essas criaturas não identificadas tentaram expulsar um casal de rapazes que se beijava durante a apresentação.  O vocalista da banda não só disparou um: 'É 2014, porra! Cadê o respeito?", como também chamou o casal para repetir o beijo lá mesmo, no palco, sob aplausos da multidão.
Pipocaram notícias sobre a atitude louvável de Digão, e aí surgiram artigos sobre a ação-preconceituosa-em-pleno-século-21 e finalmente explicações sobre como coibir esse tipo de violência e, claro, ironias aqui e acolá sobre garotinhos espertinhos que sobraram naquele espaço de muito rock'n'roll, palavreado de baixo calão, e... respeito.


Situação número 2: Chego em casa cansada do trabalho. O chefe me assedia moralmente. O trânsito engole os restos do meu juízo. O guarda me para, o pneu fura, esqueço a chave de casa, o chaveiro fica longe, entro em casa e tem xixi de cachorro. Meu pai liga para pedir que eu convença minha irmã a deixar de ser lésbica. E tenho que, de novo, recomeçar o discurso. Dizer que não tenho que convencê-la a nada. Ele briga e diz que sou uma 'vadia' como ela, e que a família está desmoronando por isso. Limpo o xixi. Abro a geladeira e ela pede socorro, mas ainda não chegou o 5º dia útil. Ligo a televisão para ver jornal e.. tragédias e mais tragédias. Mataram Pedroca, filho do primo de um vizinho meu, morava aqui no morro, mas eu só conhecia a criança de vista. Tomo um banho e, de boa, vou para internet, onde posso selecionar mais ou menos o que vou assistir. Quero encontrar motivos para rir. Nada mais justo.
Esqueci de dizer: sou negra.
E aí que encontro vídeos hilários. Eles poderiam falar mal do negão, da bichinha, ou do gari que não tem dente e sorri. Poderiam escrachar o pau mandado, ou a loira burra que 'dá' para todo mundo.
Mas não, eles tiram sarro da racista desavisada da família, do chefe machista e ditador, do homofóbico que só dá bola fora e faz papel ridículo. Do policial que mata sem saber a quem. Das situações bizonhas que enfrentamos nessa nova velha ordem de sempre..
Pronto.

Percebeu alguma coisa diferente? Não? Eu percebi..
Percebi que  é 2014, porra, e no meio de tanta barbárie, o respeito se abre como uma linha de reivindicação em várias partes. 
E se ainda não escancara as portas, já consegue gritar bem alto  e começar a se tornar um tanto incômodo os ouvidos dos que estão dentro dos muros do escárnio contra quem está em uma onda pior.
O humor, essa coisa aparentemente inocente, entra na berlinda.  Em pouco mais de 50 minutos de filme, Pedro Arantes consegue trazer, com O Riso dos Outros, reflexões necessárias sobre coisas banais como.. o que nos faz rir. As comparações são incríveis entre o humor propagado no Brasil (esse de Rafinha Bastos 'comedor' de gestantes e bebês, e que crê ser uma benfeitoria o estupro contra mulheres que considera feias) e um outro tipo de humor cujo enredo não é - como defende a comediante Ana Carolina - perpetrar estereótipos, mal entendidos ou figuras discriminatórias.
O humor, assim como a imprensa (e outras instituições de comunicação, educacionais, políticas ou culturais) - ambos difusores de informações, culturas e cacoetes- reivindicam postos de neutralidade, de imparcialidade, como se não falassem de canto nenhum. E essa inverdade tem sido dilacerada ao longo dos anos. Não pelos 'politicamente corretos', como caçoam os mantenedores da ordem (e das piadas), mas por indivíduos que têm conquistado espaço graças a esforços coletivos, e sob cujas lutas os fizeram alcançar direitos incríveis, como este de... se ofender pelo que lhes ofende!
Mas o direito de sentir-se ofendido, isso sim, parece subversivo. Porque quem se ofende corre, além de tudo, o risco de parecer chato, cafona, retrô, sem graça, moralistinha, cortador de baratos alheios, executor da *liberdade de expressão*, como mostra o doc.

Não que seja legal essa necessidade sempre constante de se buscar no Estado, seja na Justiça ou nas assembleias abarrotadas de projetos engavetados, formas de reparar danos causados pelas dores de se ser oprimido, mas a trajetória ao bom senso é longa demais. Ainda estamos naquela fase em que o cara que ofende se sente vítima de uma 'onda politicamente correta'. 
Por outro lado, não é que devamos julgar o que não se sente responsável por mudar o mundo - seja qual for sua função - mas seria devaneio demais acreditar que o humor é uma atividade neutra, de mera 'expressão da realidade', como figuraram alguns no documentário. A realidade não é monocromática,  e se você apresenta um lado, está logicamente ignorando o outro. Se você faz um humor que achincalha o oprimido, é porque escolheu de que lado está, ainda que não acredite nisso.
Ou que não me leve a sério. :)
Afinal, como diz Danilo Gentili  (e Arantes frisa): toda piada tem um alvo.
É preciso registrar, por sinal, que o documentário foi, inclusive, bastante criticado porque alavanca uma crítica já nascente. Muitos dizem que, "pronto, querem 'limitar' o humor".  Será que se trata disso?
Uno-me, no entanto, às vozes opostas e o que percebi no documentário foi exatamente o contrário: o quanto o humor brasileiro é, em si, limitado. Porque, vamos cair na real, gente: falar mal de minorias não só é dar rasteiras a quem - com muito, muito custo - têm começado a ficar de pé agora, como também é uma baita falta de criatividade. A piada está pronta. O alvo já é alvo desde sempre. E o perigo mora ali, no 'desde sempre', porque o desde sempre não percebe que é 2014, porra! E as coisas mudam.
E, felizmente, em 2014, conseguimos estar vivxs para ver a imprensa mudar o alvo no caso do Digão, dando enfoque ao combate contra a *atitude preconceituosa* e à *homofobia*, ao invés de espezinhar a *atitude de afeto* de homossexuais.
Conseguimos estar vivxs para ver as esquetes do Porta dos Fundos, esse canal 100% brasileiro que consegue *superar* o até então limitado humor 'ilimitado' brasileiro, tirando sarro com as contradições do cotidiano e do sistema e, como defende Gabriel Groswald no documentário, rir do carrasco.

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PS. Por falar em elogiar o Porta dos Fundos, fica meu 'viva!' para o texto do roteirista-e-ator-comediante Gregorio Duvivier (esse texto aqui)  que o Will Nascimento veio me mostrar logo que manifestei a intenção de escrever sobre o documentário.

PS 2. De fato é 2014, p..! Mas o documentário "O Riso dos Outros"  é de 2012.

PS 3. ver Danilo Gentilli dizer que seu trabalho se assemelha ao  de uma prostituta é demais, vai. No máximo, consegue fazer as vezes de uma boneca inflável...

PS 4. Mainha, desculpa aí os palavrões. Já lavei a boca com sabão.

Jornalista, estudante, blogueira desnaturada e mãe do Javier.

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