Uma crítica de uma crítica à Malévola: misandria e feminismo radical na mesma sacola?

Atenção: esse texto conterá spoilers desavergonhadamente. 


Quando li por aí sobre a Disney ter caído na real atualizado seus conceitos sobre as personagens femininas que decide transformar em filme, tirando do bolso produções como Valente e Frozen, não imaginava que seria tão arrebatada por uma releitura da clássica Bela Adormecida, onde o foco mesmo não é a bela, mas a bruxa. E a bruxa não é bruxa, mas uma fada moderna que não usa cor de rosa e tem chifres. Para completar, seu maior dom não é graciosidade, mas a força.

Malévola protege a natureza, o pedaço de terra que pertence ao povo de Mors: fadas, duendes, e outros seres mágicos.  Os antagonistas, nessa nova produção, não são seres malignos vindo de profundezas de sei lá onde. Mas os humanos governados pelo tradicional velho e 'bom' rei e sua gana imperialista e dominadora (porque são assim que reis se tornam reis, segundo a vida real).


A pedra do sapato de Malévola é, no entanto, a traição sofrida na adolescência - aos dezesseis anos, precisamente - quando o humano Stephano lhe deu um 'beijo de amor' mas decidiu ir embora e se aproximar da realeza. Anos depois, já como um dos homens do rei, retorna para a jovem com um cão arrependido. O objetivo por trás do momento romantiquinho não é o fim feliz de um conto de fadas, mas o início de um 'cai na real. as coisas não são tão fáceis assim'. 

A questão é que, quando Malévola acorda, descobre que o-cara-que-lhe-prometeu-amor-com-um-beijo lhe arrancou as asas para entregar ao rei como trunfo e, assim, conquistar o direito sobre a coroa. 

E agora começa a história mais ou menos como conhecemos:


Malévola descobre que Stephano, agora rei, teve uma filha, Aurora. No dia da apresentação da princesa, as três pequenas fadas começam a lhe conceder dons como ser amada e feliz e... a terceira fada não consegue emitir seu dom porque Malévola chega, cumprimenta os 'nobres, burgueses e pobres (e, nesse momento, o olhar se dirige às fadas de Mors)' e lança a maldição: aos 16 anos, Aurora tocará o dedo na agulha de uma máquina de tear, o que a fará adormecer em um sono mortal atéééé que.. ela receba um beijo de amor de verdade. Um beijo de amor de verdade. 
Malévola frisou isso na maldição, por não acreditar que beijos de amor existissem. 
O rei Stephano captou a mensagem e sabia que o sono seria mesmo mortal.  Ele sofreria na pele a traição cometida contra Malévola, tendo sua própria filha como vítima da inexistência de um amor verdadeiro. Desesperado, esconde todas as máquinas de tear e as quebra. Entrega a filha às três fadas desajeitadas, que a escondem em uma floresta e tentam cuidar dela até os dezesseis.
Mas diante da falta de jeito do trio, quem cuida mesmo de Aurora é a própria Malévola: a tira do perigo, lhe alimenta. Por fim, faz com que ela conheça o mundo mágico e recebe todo o afeto da menina em troca. Malévola se arrepende da maldição, dita em um momento de fúria, mas não consegue desfazê-la. O rei, por sua vez, cria armadilhas e explora ainda mais os funcionários na construção de armamentos contra Malévola. Enlouquecido pela culpa e pelo medo, ele ignora a rainha em um momento de morte pouco exibido, ignora o cansaço dos funcionários fazendo-os trabalhar dia e noite, ignora a chegada da própria Aurora no dia anterior ao combinado.

Malévola corre atrás de Aurora, mas a menina enfeitiçada fura o dedo na agulha da máquina e cai. Com o príncipe Felipe 'na mala', Malévola consegue entrar no castelo. Felipe a beija e nada acontece. Não, o amor (ao menos à primeira vista) não existia ali. Em lágrimas, Malévola se despede da menina com um beijo na testa e, quem diria, isso faz a menina acordar.

O amor verdadeiro existe afinal de contas. Mas no caso de Aurora, ele não veio de um corajoso príncipe com seu cavalo branco. Mas da bruxa, ou melhor, da fada com chifres. 
O rei ensandecido ainda tenta matar Malévola, mas com ajuda de Aurora que resgata suas asas, a malvada-que-não-é-malvada consegue sobreviver à luta mortal contra o pseudoamor da sua vida. E Malévola e Aurora conseguem ser felizes para sempre, claro. O príncipe Felipe faz uma apariçãozinha chinfrin, porque não é o herói da parada. Mas um coadjuvante.

A misandria (ou não) em Malévola

O colunista de um site nacional conhecidão, André Forastieri, optou por utilizar um termo técnico difícilzinho para definir a recontação da história da Bela Adormecida: misandria (veja aqui o artigo). Diz que é mais ou menos o contrário de misoginia. Porque na misandria, o homem ou provoca a maldade na mulher, ou é um mero figurante do protagonismo feminino. Um bobo. 
Tá: é uma forma de ver o filme, que coincide com uma velha forma de ver o próprio feminismo dito 'radical', inclusive. Sem conhecê-lo direito, sobretudo.
Forastieri faz analogia a uma escritora feminista que eu não li: Valerie Solamas. Se todo o livro da autora for concebido dentro daquele trecho recortado pelo jornalista, a misandria está clara. Mas como não li, não vi o contexto em que foi feito, não posso acusá-la. Mas posso falar do filme que assisti.

As ideias de Forastieri me remetem a uma outra autora que desperta certa polêmica no cenário do gênero: Elisabeth Badinter, que defende que o feminismo tem entrado em um rumo obscuro promovendo guerra entre sexos. 


Mas Badinter discordaria de Forastieri no que diz respeito à caracterização da personagem. Para ela, substituir a representação feminina como vítima frágil, em troca do enaltecimento de sua força é um avanço importante na luta feminista. Se pudermos aplicar as ideias de Badinter à vida real, a confusão é clara: a condição de vítima da mulher é, inclusive, um problema estrutural. Negar isso é como negar que existe machismo, que por sua vez é como negar a evidente desigualdade histórica - que leva mulheres a trabalharem mais e receberem menos, ou a serem menos felizes por serem mais julgadas por homens e, inclusive, por outras mulheres.

Mulheres não precisam ser frágeis por serem vítimas. Mas não é justo que lhes neguem a condição de vítimas quando assim forem, acusando-as de 'não terem sido fortes o suficiente'. Há um caminho do meio e cheio de distinções. Um que acredita no amor, mas não ignora a opressão. Que mostra que é duro que um filme infantil refute o amor romântico, mas que é mais duro ainda que ele reforce essa ideia para a 'vida real' mostrar às mulheres que esse tipo de felizesparasempre é um mito absurdo. 

Tanto é que há uma contracrítica à crítica de Badinter, que bem pode ser estendida ao jornalista que falou de Malévola. Se pudermos aplicar suas ideias (as da antifeminista) à ideologia que funcionou por muito tempo - de que mulheres devem querer ser princesas e devem esperar a salvação pelo heróismo de um príncipe - suas críticas cairiam muito bem: e vejam, ironicamente, a história clássica da Bela Adormecida está longe, beeeem longe, de ser feminista.

Por sua vez, também não acredito que a história isoladamente seja 'machista'. A história é só um conto de fadas. O problema é que quase todas as histórias de contos de fadas até então reproduziam a mesma personagem *vítima* da mulher. E é essa sequência e tendência que, ideologicamente, favorecem o machismo.  

Quebrar o conceito, ainda que em uma história só, é dizer para as meninas que assistem aquele filme que elas não precisam girar suas vidas em torno da busca por um príncipe, que elas não precisam que um herói em um cavalo branco resolva suas vidas ou lhes dê um beijo salvador. E que o amor verdadeiro existe, e pode ter vários formatos. E isso não se define tecnicamente pela misandria: é respeito à individualidade de histórias, de amores, de escolhas de vida (ou não). 

É feminismo, sim. Dos radicais. Desses que vão às raízes. Desconstrói a velha história padrão trazendo elementos novos e mostrando que as perspectivas podem ser diferentes. O príncipe não é um idiota, mas um cara que acabou de conhecer a garota e, apesar de gostar dela, não a amou no primeiro minuto. E tá tudo bem seu beijo não ter sido o salvador. O filme (e, em geral, uma grande parte do feminismo radical) também ensina outras coisas a meninas comendo pipoca no cinema: que mulheres fortes podem ser feridas e podem ser vítimas. E que vítimas não precisam ser fracas. Que podem ser vilãs e heroínas e tudo isso ao mesmo tempo, porque é essa a nossa condição: muito mais complexa do que um clássico.


Trailer


Jornalista, estudante, blogueira desnaturada e mãe do Javier.

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