Call the midwife: ela está onde está a ação


"eu não sabia nada de pobreza ou de moradias atrozes,
nada de piolhos, de sujeira,
de quatro membros de uma família dormindo numa cama.
e nada da paixão que provoca um bebê após outro, um parto após outro.
Não sabia nada da vida em si" 


Cada criança é concebida com amor, ou com luxúria,
e nasce com dor seguida de alegria,
ou de tragédia e angústia.
Cada parto é assistido por uma parteira
ela está onde está a ação.
ela vê tudo

Nas últimas décadas, tem acontecido todo um movimento mundial de resgate ao trabalho das parteiras - hoje enfermeiras obstétricas. Fundamentadas pelas evidências científicas que buscam combater  a morte de mulheres e oferecer tratamentos adequados às necessidades reais (e não mitológicas) das mulheres no parto, as lutas antes tão esparsas e individuais dessas profissionais hoje ganham forma e apoio de um Estado que percebe ser também economicamente vantajoso combater a 'tecnocracia' avassaladora. As mulheres estão consumindo cesarianas, por achá-las 'salvadoras', e os profissionais da vez são os cirurgiões obstetras, que parecem não saber mais assistir partos, apenas cortar barrigas e tirar bebês de dentro dela. No nascimento de hoje, as parteiras não estão, porque não está a ação. Só a inércia e a espera.

Chamar as parteiras de volta é um  dos elos mais importantes para que esse tipo de 'barbárie' (como define o obstetra Ricardo Jones) deixe de levar mulheres e bebês a riscos de morte ou a consequências mórbidas. Chamar as parteiras é uma das soluções fundamentais para resgatar o que há de bom no passado aliando, claro, com o bom uso da tecnologia desenvolvida até agora.

A série Call the Midwife não fala sobre isso. Não fala porque, nos anos 50, chamar a parteira significava outra coisa. Significava, apenas, que estava na hora do bebê nascer e que era necessário que a profissional adequada o aparasse. E acolhesse a mãe. E a orientasse. E a assistisse. Coisas que parteiras dos anos 50 fazem.  Do mesmo modo, chamar o médico significava que o nascimento não poderia ser natural e, portanto, seria necessária uma interferência técnica específica. Simples assim.

Ambientada no East End -  leste de Londres-  onde residiam famílias de estivadores e prostitutas, a série baseada no livro (e na vida) de Jennifer Worth mostra um grupo de parteiras que atuam em uma instituição de saúde gerenciada por freiras, o 'Lar Nonato', e como se dava toda a assistência às gestantes e famílias pobres daquele lugar. A protagonista-observadora, Jenny Lee, também é baseada na vida da própria Jennifer Worth, quando solteira e iniciante no Lar Nonato. Com a assistência das parteiras, as mulheres parem em casa, deitadas, de cócoras, com bebês pélvicos, com cordão enrolado. Algumas riem, outras gritam, outras choram. Se há contingências, há forma de repará-las, mas a questão é que, na série, parir é a coisa mais natural do mundo. 

É importante notar que, naquele período, a assistência aos nascimentos já passava por uma espécie de transição. É lá que vemos se propagar a analgesia - à época, com o gás do riso - e o controle de exames sobre o feto, que começou com o Raio X no período em que crescia o número de gestantes com tuberculose. O médico não era um personagem todo-poderoso, mas também um trabalhador que se aproximava conforme as contingências. Refrescava um pouco a alma ver a relação de parceria entre médico e parteiras (embora o sentido hierárquico também estivesse presente), em meio às condições de precariedade em lidavam tantas vezes.

As sutilezas e a cruezas nas relações familiares, de gênero e de trabalho, ganham tanto destaque quanto a própria temática chave do seriado.  Portanto, veremos mulheres aversas ou apaixonadas à medicalização, mulheres que trabalham, mulheres mães solteiras, religiosas, abandonadas e que abandonam; mulheres que sofrem violência, que a enfrentam ou buscam outras dimensões por onde fugir. Vários temas difíceis de se tratar à época, e inclusive atualmente, como morte, poligamia, fanatismos, gravidez na adolescência, prostituição, envelhecimento, abusos sexuais, e até incesto, são abordados com tanta delicadeza que deixam nossos entendimentos de mundo em suspenso.  

Enfim.. basicamente é a história de mulheres que cuidam de outras mulheres - escrita por uma mulher e dirigida por outra. Sei que isso pode não revelar tudo, mas já diz bastante. Tem muito amor em cada episódio, e muitos referenciais históricos também, no que resulta em uma sensação de transição para um determinado tipo de conjuntura que hoje se quer combater - e, em certa medida, preservar.


Bom saber:

- A BBC já anunciou a quarta temporada, o que, para quem está terminando a segunda, é uma notícia e tanto.

- No entanto, Jenny Lee estará fora. A atriz Jéssica Raine decidiu emplacar a carreira no cinema. Vanessa Redgrave, que interpreta Jenny Lee 'madura', continuará narrando o seriado. Não sabemos como tal empreitada será costurada. Vamos aguardar...

- A autora das memórias as quais o seriado se baseou, Jennifer Worth, faleceu em maio de 2011, sete meses antes do início da série - que começou em 15 de janeiro de 2012. As filhas de Jennifer já revelaram, entretanto, que a produção cumpre com bastante cuidado a missão de retratar exatamente as histórias contadas pela autora.   

- Segundo alguns sites europeus, desde o início da série, cresceu em 17% o interesse pela parturição na Grã- Bretanha. 

- No Brasil de hoje, onde 98% dos partos são feitos em hospital, e onde a corporação médica prejudica a inserção da parteiras no cenário do parto, a 'epidemia' das cesarianas tem sido identificada como uma das grandes causas de mortalidade materna - aliada a abortos mal realizados, em decorrência de sua clandestinidade (mas isso é papo para uma outra conversa).



Jornalista, estudante, blogueira desnaturada e mãe do Javier.

Share this

Related Posts

Previous
Next Post »